Sou do tempo em que a esquerda podia lançar a ilusão de que encarnava a cultura. Muito precariamente pois o "intelectual de café", o "homem de esquerda", "o fala-barato" rapidamente se tornou um estereotipo ridículo. O intelectual de esquerda era, mesmo assim, um ser perigoso de duas faces. Ora puritano - quando antecipava o mundo a vir, o seu paraíso comunista, imbuído de disciplina e dedicação aos altos ideais retóricos - ora decadentista quando retratava a "sociedade capitalista moribunda". Homem de duas faces, leitor esforçado das cartilhas, opinador convicto, manhoso, taxativo, cruel.
Pois bem. A gente de esquerda deixou de frequentar o café. Estão todos muito bem colocados na função pública, de preferência nos corpos inspectivos dos ministérios - usando o processo disciplinar com maestria, treinando o mundo que há-de vir - ou em organismos paralelos esquisitos, alfobres de assessores e de ministros. O serão é para os telefonemas demorados, para as combinações.
A intelectualidade genuína, séria e laboriosa nunca foi o forte da esquerda. O Capital bastava-lhes, o resto são panfletos, processos inquisitoriais, artigos de jornal, campanhas difamação. A propaganda e o negócio escuro é o que lhes vai no sangue. Vendedores de sonhos e ilusões, urdidores de mitos, mafiosos, por tradição antiga. Na hora da verdade, da entrega, carrascos sanguinários, fornecedores de crueis desilusões. A gente de esquerda já não precisa da cultura barata. Entretem-se com coisas sérias, chegou ao poder. É responsável, exigente, toca outro instrumento. Neocons, na América; aqui, não têm nome nem cara. PS, pode ser a coisa mais parecida, mas estão em todos os partidos.
No terreno da escrita pública, a esquerda deixou para trás meia dúzia de parvinhas fotogénicas e uns tantos cretinos furiosos ou alucinados para entreter a classe média. Treinada no velho liceu, à classe média basta-lhe que a palavra seja escrita e impressa em bom papel, escrita sempre pelos mesmos, para ser verdade.
Vem isto a propósito do panorama bloguistico. O que é sério, em filosofia política, é quase exclusivamente nacionalista ou libertário (classical liberalism). Lê-se do melhor. Visite o leitor http://www.batalhafinal.blogspot.com/ e delicie-se com os últimos posts e com a cadeia de comentários, vivos, perspicazes, cultos.
Lá vai aparecendo o/a militante de esquerda. Está-se à espera de argumentos/cassete do tipo "a classe operária blá, blá" ? Nem isso já. É só "sois uns nojentos, racistas, bla, bla" e mesmo disto, pouco. E a iniciativa intelectual de esquerda? Há! O "blog de esquerda" de conceituada personalidade do milieu. Mas que... Vinte posts a despedir-se. Que snobismo bacoco! E o Indimédia? Que índios, só rapazinhos a afiar canivetes!
A esquerda perdeu a batalha de cultura. Também nunca a travou. Como disse, propaganda apenas. É certo que teve um ponto de maior perfeição no sofisma, um ponto alto, com o neo-realismo. Mas agora a esquerda já não quer saber de realismo, de crítica social. Pudera, arranjar lenha para se queimar?